sábado, 9 de março de 2013

O tempo, o tempo e nossos enganos

Uma das coisas que mais marca o crescimento é nosso sentido de tempo. Creio que todos nós sintamos que, quando envelhecemos, é como se os anos mudassem o ritmo de suas passadas... Antes iam a passos calmos, vagarosos, chegavam a dar raiva e nós deixavam loucos para que os dias voassem. Até que eles de fato começam a voar. Depois de uma certa idade, é tão comum ouvir coisas como "já estamos em março!", "o ano mal começou", "já está terminando, gente!"... Enfim, a forma como percebemos os segundos muda - e com ela, muda também nossa percepção de vida. E ela então passa rápido, muito rápido.

A história humana data de dezenas de milhares de anos, e talvez por isso tenhamos a impressão que muito do que aprendemos em história sejam coisas "velhas", num tom pejorativo. O que quero dizer é que acontecimentos que estão distantes de nós na medida de uma vida humana acabam nos parecendo como afastados por uma eternidade, quando, na verdade, não estão. E se você pensa com um pouco mais de atenção, acaba se deparando com o fato de que certas atrocidades que nossa raça cometeu aconteceram a 70 anos ou menos... Uma delas, mácula indelével sobre a índole do homem, é o holocausto. Ser judeu ou homossexual, entre outros, podia levá-lo a definhar num campo de concentração, sendo escravizado, utilizado em experimentos bizarros e, em última instância, morrendo dentro de uma câmara de gás ou de maneiras ainda piores... Coisa que não é bom nem imaginar. E aqui retomo o foco para o tempo: isso aconteceu há pouco mais de 7 décadas. Existem testemunhas oculares dessa tragédia vivas até hoje, e é bem possível que elas lembrem de toda as mazelas e histórias que se ouvia naquela época como se fossem de ontem... Porque ontem sempre está mais perto do que, na maior parte do tempo, mensuramos.

Agora, voltando ao século XXI, com o que nos deparamos? Um deputado dono de declarações homofóbicas e racistas (por que será que isso me lembra o nazismo?) assumindo um cargo-chave para decisões que envolvem as minorias ainda oprimidas de nossa sociedade, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Tudo bem que considerar isso o começo de um novo holocausto é bem exagerado, mas são conceitos virulentos que persistem no mundo e, em maior ou menor grau, não foram superados pela sociedade humana. O Brasil é um país que já repudia o racismo legalmente, bem como se abre, ainda que à força, cada vez mais a discutir a cidadania LGBT, mas por aí tem lugares que condenam criminalmente a prática homossexual (à morte, por exemplo), e tratam suas mulheres como objetos a serem manuseados pelo pai/marido/qualquer homem que se torne responsável pela mesma. A verdade é que o machismo está presente no dia-a-dia do nosso país, mas quando falo destas outras nações, faço referência a meninas e moças que, ao bel prazer de seu cônjuge, pode ser mutiladas, abusadas, humilhadas e mortas de formas inacreditáveis... Enfim, o preconceito deixa marcas em todo lugar, e infelizmente está longe de ser superado.

Daí me pergunto: o quão distantes nós, como sociedade humana, estamos do holocausto? Será que podemos viver realmente seguros de que o futuro será de liberdade plena e compaixão como instituto maior da experiência humana? Quem nos garante que a ganância e maldade humana tem autocontrole o bastante para que o caos não tome proporções apavorantes mais uma vez? Na verdade, nada nos garante um futuro mais pacífico... E a julgar pelo nosso caminho, dá até para imaginar o quanto todos nós, mulheres, homens, pretos, brancos, gays, héteros, transexuais, enfim, NÓS corremos grandes riscos. E isso me dá calafrios.

Isso me dá calafrios.

O tempo não pára de passar, e se hoje felizmente estamos em outra época, não quer dizer que já superamos as anteriores, ou que estão distantes demais. Engana-se vergonhosamente quem acha que as feridas já viraram cicatrizes.
Pois elas ainda sangram, sangram no espírito de quem sofreu e ainda sofre, dia após dia.

Portanto, lutar é necessário.
Lutar e lutar e lutar até o ódio se calar. Travar a batalha pacífica que nos tornará maiores que nossas misérias.

Encontrar o amor como a resposta mais sincera.
O amor, antes de tudo, como a resposta mais sincera.


"Love is love, and there will never be too much"

Fiona Apple

domingo, 3 de março de 2013

Ray of Light, em três partes



Hoje meu disco predileto de Madonna completa 15 anos. E até tentei escrever um texto semelhante ao que fiz para o Erotica (que fez 20 anos em 2012), mas não consegui. Acabei apelando para os sentidos, e deles nasceram três partes de uma história não-linear e incompleta. Uma história que representa parcamente o que o Ray of Light é para mim. Espero que haja espaço para vocês também, aqui.

E parabéns, Rol! Muito obrigado.


LIGHT

PARTE I - Drowned World/Substitute For Love & Ray of Light

E é um mundo em minha vista. Um mundo inteiro, cheio de acertos, de erros, de sonhos, desejos, apelos e desapegos, fogo morto, chama viva. É um mundo inteiro que hoje vejo, da janela que se abre em minha mente e traz, no zéfiro desta noite escura, a certeza de que a alma não só visita. Ela é viva, e quer vida.
Pois é um mundo tão grande, gira tão rápido, e mesmo não saindo de seu lugar continua eternamente a mudar. É um mundo que morre e renasce todos os dias, uma imensidão que explode em todas as cores espalhadas pela trilha. É vermelho, é amarelo, é azul e cinza. Rosa choque, branco de paz, preto de luto, verde de vida. É certeza de que seu peito explodirá, todo dia. É certeza de que teremos algo por nós, todo dia.

E o amor é suficiente. E o mundo é suficiente. A comida, a nudez, as palavras, todas são suficientes. Eu estou em casa.

“This is my religion”

É suficiente.


PARTE II - The Power of Goodbye & Frozen

Ouço o silêncio entre nós, e como se soubesse que a noite está para acabar, abro os olhos para contemplar o resto da escuridão. E nela vejo as lembranças. Vejo os presentes, as festas, as noites em claro e os dias, tão iluminados... Eu vejo a distância. E um resquício ínfimo de esperança.
Mas não posso me apegar a ela, o tempo disso já passou. Ouço mais uma vez o silêncio, e um peso em mim se alojou. Acho que você foi à porta... Será que finalmente vai embora?

“Your heart is not open, so I must go”

Nem o seu, muito menos o seu. Na verdade, não posso nem falar coisas assim, pois não houve culpados. Tentamos com toda a força que restava reconstruir esta casa, mas como edificá-la se a terra sob ela foi roubada? Não temos mais chão, não temos mais nada. Observo a escuridão cada vez mais ciente de que a manhã é chegada.
E pela segunda vez, você foi à porta. Pela terceira vez, depois de voltar à cama, vejo sua sombra caminhando até lá fora. E entre palavras que não valem de nada, já com a luz invadindo o espaço, dou-lhe um beijo enfadado e desejo o melhor como resposta.
O melhor... Quem se importa?

“If I could melt your heart...”

Mas ele não era frio.
Só invernava.

Vejo a neve caindo, nesta casa.


PARTE III - Mer Girl

Eu sou uma mulher que procura. Eu corro enquanto procuro. E mesmo indo rápido, reparo em todos os detalhes que meus olhos possam captar. Eu ouço você chorar, nunca pude lhe ignorar.
Mas eu sou uma mulher que corre de monstros, e de fantasmas. Eu corro deles e a seu encontro, já que na inconsciência de minhas passadas continuam a aparecer em todo lugar. A meu lado, minha mãe. E do outro, minha filha. Eu as engulo, não posso evitar. E eu corro, não posso evitar.
Porque a corrida não é o bastante. Porque a vida também não é. Se nenhuma das duas tem função de fato, poderia até parar... Mas minhas pernas não me deixam por um instante pensar em ficar. Não posso ficar. E corro, com a mesma intensidade de quando era menina e sabia que você tinha ido embora. Eu corro para lhe encontrar, e lhe abraçar, saber que você não deixou de estar lá. Fui ao cemitério para lhe encontrar.

“And I smelt her burning flesh
Her rotting bones,
Her decay.”

E de lá, eu corri.
Foi como, num instante cego, eu me vi.
E corri.

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"Nothing really matters, love is all we need. Everything I give you, all comes back to me"