quinta-feira, 12 de outubro de 2017

O abandono materno: impressões sobre o filme Mother!


Mother! é construído como uma alegoria bíblica? Sim. Mas ele se detém a retratar o ciclo da gênese ao apocalipse de forma descritiva e pouco crítica? Claro que não. Mother! na verdade é uma crítica bastante acirrada sobre como o patriarcado desde tempos imemoriais (e míticos até) explora a energia feminina, sem respeitá-la como contraparte equilibrada da masculina.

O Poeta-Criador, que usurpa o cerne original da própria força criadora (enquanto mulher) e o utiliza para recriá-la como A divindade encarnada, acaba posicionando-se como detentor de todas as possibilidades — ainda que fique bem claro em vários momentos que sem Ela, sem essa força motriz ele não passa de uma figura pouco inspirada, vaidosa e megalomaníaca.

A Casa também é uma representação bem direta do planeta Terra, e ao ser invadida por estranhos (os humanos) que vêm vandalizá-la, ignorando e debochando de cada consideração feita pela Mãe ("desce da pia, não está chumbada"), serve de construção perfeita para nossa inabilidade, como humanidade, de respeitar o planeta e honrar sua existência material E imaterial (mais uma vez corporificada pela Mãe, que aqui se confunde com Gaia).

Quando caminha para seu fim climático e apocalíptico, vemos também a Mãe tentando proteger sua cria, e ao vê-la morta, simplesmente porque o Poeta não conseguia controlar seu escandaloso exibicionismo, Ela dá sinais de revolta e é rechaçada pela própria humanidade, com atitudes evidentes de Slutshaming e violência física. Com isso o texto  demonstra mais um vez o assalto ao feminino, culminante com a completa destruição da Casa-Terra, num ato suicida que se conclui com a inspiração feminina fundamental novamente  usurpada — o coração Materno é roubado pelo poeta, em forma puramente cristalina.

É tão crítico por fim que a Mulher (Eva), logo no começo do filme, tenha partido em pedaços aquele cristal. Eva tomou consciência corporal, adquiriu conhecimento — até então proibido e sagrado (o de sempre, mordeu o fruto), tornou-se cínica para com a Mãe e repartiu a insatisfação de sua condição de humana (que portanto morre) com o mundo. Em resumo, o espírito de todo conhecimento, e portanto de toda criação, vem de uma figura feminina, vem da Mãe. E nós sabemos disso — ainda que de forma subconsciente, mas a rejeitamos mesmo assim. O patriarcado age de uma maneira sutil e assustadora.

Em resumo, Mãe! é mais do que uma alegoria grotesca: é uma denúncia de como em todas as instâncias quem vem a perder, a ser explorada e finalmente rejeitada é a mulher, mesmo sendo ela a expressão plena do que é a criação. O diretor e idealizador Darren Aronofsky só está nos dizendo: a Mãe não demanda dos seus filhos respeito, mas PRECISA disso urgentemente. Esse filme é uma louca ciranda de arquétipos, um retrato do genocídio da Terra também. Da Mãe que dá e tira, mais do que possamos perceber — ou mesmo, em tempo, nos importar.